40 anos NOVA FCSH
© Luís Aniceto / Vítor Cid

Maria João Afonso, a inscrição número 1 na NOVA FCSH

Já nem fui à Faculdade de Letras, fui direitinha ao Seminário dos Olivais onde funcionava a Universidade Nova de Lisboa e apareci a dizer: “Venho-me inscrever”. A senhora nem queria acreditar. Foi assim que acabei por ser a primeira inscrita.

A seguir ao 25 de Abril, as faculdades não abriram durante um ano letivo. Criaram um ano intermédio de serviço cívico, porque era preciso ocupar os alunos — trabalhava-se em piscinas, escolas, 30 mil coisas diferentes. Eu sou do segundo ano de serviço cívico, mas quando me fui inscrever disseram-me logo que não iam chamar ninguém. A certa altura, já não sei se em março ou abril, o ministério anunciou que ia haver um exame de admissão à faculdade. O exame era uma prova de Português e duas provas específicas, mas só quem passasse a Português era classificado nas específicas. Apanhámos um susto de todo o tamanho. Estivemos um ano inteiro sem estudar e de repente vem um exame de Português, mais duas específicas?!

A prova era uma coisa completamente cretina, ainda me lembro. “O Sr. José tinha olhos azuis da cor do céu e barba branca como a neve e era jardineiro.” E depois as perguntas: “Qual é a comparação dos olhos do Sr. José? Qual é a comparação da barba do Sr. José.” Não consegui perceber porquê, sinceramente, mas quando vieram os resultados 70% tinham chumbado. Foi de tal maneira, que anularam a prova e só valeram as específicas. Durante este processo, soube pela minha mãe que a faculdade ia abrir. Já nem fui à Faculdade de Letras, fui direitinha ao Seminário dos Olivais onde funcionava a Universidade Nova de Lisboa e apareci a dizer: “Venho-me inscrever”. A senhora nem queria acreditar. Foi assim que acabei por ser a primeira inscrita.

Entrei em 1977/78, se bem que as aulas só tenham começado em janeiro de 1978. Éramos só 15 e para as três línguas, Francês, Inglês e Alemão. Mas, ao longo do ano, vieram mais pessoas. Fomos o primeiro curso com Português e uma língua estrangeira, enquanto na Faculdade de Letras continuava a ser Românicas e Germânicas.

Tivemos um dos maiores medievalistas a ensinar-nos Literatural Medieval Portuguesa, Stephen Reckert. Era um grupo de professores fantásticos: a Maria de Lourdes Belchior, a Teresa Rita Lopes, a Teolinda Gersão, o Nuno Júdice, a Yvette Centeno, o João Ribeiro da Fonte, o João Barbosa… Todos nos ensinaram o que era a sua investigação. Éramos um grupo pequeno, o que também ajudou a aproximação, tínhamos um ambiente ótimo. Anos mais tarde, fomos acusados de termos sido uns privilegiados — é verdade, tivemos uma formação literalmente de elite.

A faculdade praticamente era o que é hoje o B1. O edifício estava rodeado de andaimes, com homens pendurados, connosco dentro das aulas

O nosso primeiro ano foi horrível! Íamos para as aulas e levávamos tapetes, mantinhas, botijas de água quente, chaleiras para aquecer o chá, termos. A corrente de ar, o frio… não tem explicação. Parecíamos todos doidos, encapuzados, de luvas… Estava tudo em obras, muitas janelas não estavam postas, tanto que um dia um dos trabalhadores bateu à porta da sala, pediu licença ao professor, atravessou a sala na diagonal e saiu por uma janela. Tudo sem dizer uma única palavra! Nós ficámos atónitos e o João Barbosa, que era o professor, limitou-se a comentar: “Bom, era o caminho mais curto”. E continuou a aula. A faculdade praticamente era o que é hoje o B1. O edifício estava rodeado de andaimes, com homens pendurados, connosco dentro das aulas.

Havia um acordo para podermos ir ao bar do DRM [atual edifício de I&D, onde funcionou durante muitos anos a Direção de Recrutamento Militar], mas desistimos rapidamente. As bocas, as piadas eram de tal ordem que não dava. Mas, quando chegávamos às aulas de manhã, os soldados estavam na parada e era a nossa vingança, finalmente as raparigas podiam gozar. Só havia uma rede de galinheiro a separar os nossos espaços dos deles.

 

O cartão de biblioteca de Maria João Afonso

 

No dia em que começámos as aulas, o Prof. Oliveira Marques, que era o presidente da Comissão Instaladora, foi à nossa sala receber os alunos da nova faculdade e saudou-nos com: “Aqui concretizamos o ideal revolucionário de estudantes, trabalhadores e Forças Armadas”. Era verdade. Estávamos nós, estavam os trabalhadores das obras e a tropa do outro lado da rede.

Depois do B1, fizeram o edifício onde é agora a livraria Colibri e onde era a biblioteca. No dia em que tivemos os primeiros três livros, bem… Nós sabíamos a biblioteca de cor. Foi divertidíssimo vê-la crescer.

A minha filha mais velha tornou-se afilhada da turma toda. Eu casei-me no final do 2.º ano, soube que estava grávida na véspera de começar o 3.º ano e a minha filha nasceu oito dias depois de eu ter entregado o último trabalho. Ainda me lembro, o trabalho era sobre “O Crime do Padre Amaro” para a cadeira de Literatura Portuguesa do Prof. José Manuel Mendes. Entreguei-lhe o trabalho numa quarta-feira e na quarta-feira seguinte fui para o hospital ter a criança. Deu tempo para tudo.

Acabei por ser a primeira licenciada da faculdade a ser contratada como assistente estagiária e fiz carreira na FCSH até 2004. Nessa altura saí e continuei a trabalhar como tradutora e dramaturgista. Trabalho para a edição e com uma companhia de teatro profissional de Cascais: a PALCO13, além de ser voluntária dos museus de Cascais.

Aluna da licenciatura em Língua e Literaturas Modernas — Inglês 1977/78, foi professora da NOVA FCSH até 2004.

 

Escrito a partir de um depoimento recolhido por Alda Rocha.