40 anos NOVA FCSH
Raquel Soeiro de Brito
Fotografia de Nuno Pires Soares

Raquel Soeiro de Brito, a pioneira

Raquel Soeiro de Brito foi uma das primeiras mulheres a doutorar-se em Portugal, com apenas 28 anos, e a primeira em Geografia. É uma das fundadoras da NOVA FCSH, onde criou os departamentos de Antropologia e Geografia e Planeamento Regional. Saiu em 1996. Dois anos depois, foi distinguida por Jorge Sampaio com a Ordem Oficial da Ordem Militar de Sant’iago da Espada.

Gastou muitas solas a calcorrear o país, quando o território nacional se estendia muito para lá da Europa. E não foram poucas as vezes em que suscitou estranheza, chegando até a ser confundida com uma espia russa. Sozinha a cavalo, de cabelos louros, com uma parafernália de equipamento estranho a tiracolo, compunha o quadro perfeito para uma história de espionagem. A geógrafa Raquel Soeiro de Brito queria simplesmente conhecer a realidade que estudava, o que estava longe de ser um dado adquirido naqueles tempos.

Quando a NOVA FCSH foi criada, já tinha um longo percurso académico. Doutorou-se em Geografia em 1955, deu aulas na Faculdade de Letras e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas até 1977. O que a motivou a abraçar este projeto de criar uma faculdade na área das ciências sociais e humanas?
Tenho de começar por contar pelo princípio. Eu era professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. No dia 26 de abril [1974], logo às 9 horas da manhã, quando chego à porta, vejo uma escada muito grande e uns tipos a subir que me respondem: “Estamos a tirar o ‘Ultramarina’.” Dos nove professores catedráticos, só fiquei eu. Foi um ano muito complicado, mas engraçado, aprendi imenso nesse ano [1975/76]. A certa altura, numa RGE [reunião geral de escola], fui eleita pelos alunos presidente da escola e disse-lhes que escusavam de pensar que eu não estaria a horas na reunião seguinte. Riram-se. Na primeira reunião depois disso, não só estava a horas como levava na mão o famoso papel azul de 25 linhas, pedindo a minha demissão. “Vai agora mesmo ser entregue por mim no ministério.” Saí porta fora e fui para o ministério.

A Universidade Nova de Lisboa nasce com uma vantagem muito grande: a nomenclatura. Não era Faculdade de Ciências, era Faculdade de Ciências e Tecnologia; não era Faculdade de Economia, era Faculdade de Ciências Económicas; e a nossa não era Faculdade de Letras, era Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.

Que sucedeu depois?
O ministro disse que perante a minha demissão ia fechar o ISCSP. Disse-lhe que não tinha capacidade para mais, que tinha feito o que podia — aquilo era uma bagunça. Depois, fiquei um ano em casa e aproveitei para fazer os trabalhos que tinha atrasados. Entretanto, estávamos em 1977 e fui chamada ao ministério, assim como o Prof. Oliveira Marques, que era catedrático há pouco tempo — eu já era catedrática há muito tempo. O José Mattoso, que ainda não era catedrático, juntou-se depois. Este grupo formou-se para inventar a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

A Universidade Nova de Lisboa nasce com uma vantagem muito grande: a nomenclatura. Não era Faculdade de Ciências, era Faculdade de Ciências e Tecnologia; não era Faculdade de Economia, era Faculdade de Ciências Económicas; e a nossa não era Faculdade de Letras, era Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.

Ficámos os três a gerir a faculdade. Entretanto, o Oliveira Marques apresenta um programa para o departamento de História. Fundou-se o departamento de Sociologia, que estava camuflado no ISCSP, porque naquela altura [antes de 25 de Abril] ninguém podia falar em Sociologia. O ministro pediu-me para eu formar o departamento de Geografia, mas eu disse-lhe que naquele momento não podia, mas ofereci-lhe em troca o departamento de Antropologia. Na secção de Antropologia do ISCSP havia pessoas que eram boas, com as quais eu contava, e juntavam-se outras que elas indicassem, enquanto eu ia preparando o departamento de Geografia. Mas expliquei ao ministro que não aceitava um departamento igual ao que havia na Faculdade de Letras.

Como reagiu o ministro?
Disse-lhe que tinha aprendido muito com os meus trabalhos de campo e queria fazer um departamento que fosse mais moderno e com outras preocupações além de preparar professores de liceu. O ministro achou muito bem e deu-me uma bolsa para eu poder ir a vários departamentos de Geografia, fora de Portugal. Andei pelas Europas, onde sabia que havia institutos de Geografia onde se fazia o que eu pensava fazer. E fui discutir com aqueles professores o que eu tinha imaginado como primeira aproximação. Em 1979 foi aceite o meu programa e aceite o departamento de Geografia da Universidade Nova de Lisboa.

 

Que trazia de novo em relação aos departamentos que existiam nas outras universidades?
Nas outras universidades eram departamentos estanques. Um geógrafo é um médico generalista. É um tipo que olha para uma criatura, que a ausculta, que a observa e diz: “Isto é muito grave, faça o favor de ir ao especialista do coração, dos olhos, da memória”. O geógrafo vê o conjunto, depois há os especialistas: o economista, o sociólogo… Eu entendia que um geógrafo precisava de uma mini-formação de sociologia, uma mini-formação de economia, uma mini-formação de política, porque a geografia é um mundo. Quem não sabe geografia bem pode passar para outro mundo — neste, tem de ter noções de geografia. Se rebenta uma guerra em Riade, tem de se saber onde está Riade, quem está em Riade, quem comanda em Riade e porque há guerra em Riade, porque senão está fora do mundo.

Como foi ver uma faculdade começar do zero?
Foi muito complicado, porque não tinha pessoas e tive de as ir convidar onde havia. E como eu fui contra o estabelecido de que a geografia era aquela coisa fixa, rígida, tive de ouvir: “Isto não vai resultar”; “Ela não sabe o que está a fazer”. Até o nome foi complicado. Fundei o departamento de Geografia e Planeamento Regional. Sem haver um planeamento regional não há um mundo capaz, é a bagunça que nós estamos a ver. “Mas o que é isso de planeamento regional?” Não obriguei ninguém a ir, mas foi complicado. Uns gostaram de mim; a maior parte não. E eu fiz uma escolinha com gente fantástica e de tal maneira foi fantástica que deu gente para tudo quanto há. Proporcionalmente com outras faculdades, temos muito mais gente fora do ensino secundário. Estão no ensino superior, no mundo privado, nos ministérios, a fazer planeamento pelo país. Foram os precursores de uma geografia fora do ensino.

O professor deixou de ser o bicho, com que não se falava, de que se tinha medo, e passou a ser uma pessoa com quem se ia falar, perguntar coisas que não se sabia ou com quem se tinha uma simples conversa de café.

Muitos apelidaram de “escola de Geografia de Lisboa” a linha de pensamento que caracterizava o departamento que criou. Além da multidisciplinaridade e do planeamento, que teve de distintivo?
A ligação de alguns professores com os alunos — na altura foi absolutamente único. O professor deixou de ser o bicho, com que não se falava, de que se tinha medo, e passou a ser uma pessoa com quem se ia falar, perguntar coisas que não se sabia ou com quem se tinha uma simples conversa de café. Eu almoçava muito com eles – e era muito criticada: “Aí vai ela com os meninos”.

Depois, houve uma cadeira que foi a chave. Quando viram Informática num plano de estudo de Geografia perguntaram: “Que tem a ver a Informática com a Geografia?” Tem tudo, como Matemática tem tudo. Há muitos geógrafos que fizeram muita asneira, que não disseram nada capaz, porque não sabiam que 2 e 2 eram 4.

Houve uma altura em que eu fiz tudo quanto pude para mudar o sítio físico do nosso departamento para a Faculdade de Ciências e Tecnologia, onde sempre entendi que a Geografia estava mais bem colocada. E foram os meninos velhos [alunos da primeira licenciatura] que não quiseram ir e professores também. “Ter de atravessar o Tejo?!” Tive um edifício inteiro à espera de que nós fôssemos, durante um ano.

Foi discípula de Orlando Ribeiro. Que significou poder acompanhar de perto aquele que é considerado o pai da Geografia em Portugal?
Quando veio para Portugal, o Orlando instituiu, por exemplo, o trabalho de campo, que não existia. Mas eu aprendi o trabalho de campo com duas pessoas: o Orlando Ribeiro, que era da parte humana, e o Mariano Feio, que era da parte física. O Mariano era uma pessoa pacata, muito inteligente, que ajudava os alunos, porventura até mais do que o Orlando, mas que ninguém dava por isso — ajudava-os muito sub-repticiamente. O Orlando era uma pessoa exuberante, que tinha uma palavra fácil e falava muito bem. Lembro-me de uma aula sobre o Minho, onde eu tinha vivido em pequena — dizia-me muito — em que eu não escrevi uma palavra, porque fiquei a olhar [mostra uma expressão de deslumbre]. No fim veio falar comigo:
— Tu não escreveste nada, mas o que é que tu julgas que estás aqui a fazer?
— Eu estou a aprender.
— Mas como, se não escreveste nada?
— Não precisei de escrever, porque eu sabia o que o senhor contou. Gostei muito de o ouvir.

Desarmou-o.
Os dois eram pessoas muito diferentes, mas tenho uma pena imensa de que ninguém fale no Mariano, porque ele fez muito pela geografia.

Foi uma das primeiras mulheres a doutorar-se em Portugal e a primeira em Geografia…
Depois de 1930 julgo que fui a terceira mulher doutorada. Foi a Prof.ª Virgínia Rau, de História, já bastante mais velha e uma figura importante da História de Portugal. Depois, a Prof.* Lourdes Belchior, de Letras, que teve um belíssimo desempenho, nomeadamente na direção do Centro Cultural Português da Gulbenkian [fez também parte do conselho fundador da Universidade Nova de Lisboa, de 1973 a 1975].

Teve um sabor especial, por ser tão raro?
Não, meteu-me raiva! Só me valeu ser mais criticada e mais aborrecida, durante as provas. Não se imagina o que era um doutoramento naquela altura — aqueles velhos… Começava por eu ser uma criaturinha de 28 anos:
— Vinte e oito anos, o que é que sabe?
— Sei o que sei e o que vou aprender mais.
Eram os professores catedráticos todos — todos! — da faculdade, mais os professores específicos. Eram uns 12 ou 14, já não sei bem. Todos metiam pé, um gozo: “Na página não sei quantas, há uma vírgula que não está bem posta.”

Mesmo a idade do doutoramento era incomum na altura.
Mesmo o Cintra – o famoso Lindley Cintra [linguista, 1925-1991] – tinha 30 anos e era homem. Eu tinha 28, era mulher e geógrafa que era uma coisa que a maior parte das pessoas não sabia o que era.

Identifica-se como uma geógrafa de campo. É possível ser-se um geógrafo sem essa relação com o território?
Eu não compreendo. Um geógrafo tem de ter ação. Um historiador não pode ser um historiador se não tiver livros e se não os souber ler. Um geógrafo não pode ser geógrafo, sem saber olhar.

A minha vida foi feita em estudos parcelares em Portugal e em todo o território que foi português no mundo. Andei, gastei solas, gastei sapatos e gastei-me a mim mesma. É campo autêntico, de estar lá, de viver, de ter medo do leopardo, de acordar de noite assustadíssima com uma fogueira à volta por causa dos escorpiões. Atravessar um rio a cavalo, o cavalo escorregar e eu atravessar o rio a pé com água pela cintura e as máquinas no ar, que eram mais importantes do que eu.

A fotografia foi sempre um auxiliar importante do seu trabalho de campo?
Fotografia e cinema. Tenho inclusive uma história na Guiné, onde já tinha começado a guerra, com uma máquina de filmar, que é uma laracha. A malta toda reuniu-se e ninguém dizia nada, até que um deles perguntou: “Que arma é esta?” Filmei um bocado e mostrei para verem como era. Ficaram desiludidos e foram embora. Isto nunca se teria passado em Luanda ou em Lourenço Marques, mas passava-se noutros sítios. Uma vez fizeram uma acusação à PIDE [polícia política no tempo da ditadura] de que andava por ali uma espia russa – uma mulher de calças, cabelos louros, a cavalo, sozinha, uma quantidade de máquinas que não sabiam o que eram. As máquinas fotográficas ainda sabiam, agora as outras… uma bússola, um medidor de imagem. Ui, que desgraça.

Fez muito trabalho de campo sozinha?
Fiz — refiro-me a geógrafos. Fiz algum trabalho de campo com o Mariano, em Angola. Em Moçambique, fizemos uma viagem para vermos as diferenças fundamentais. Aí éramos cinco: o Orlando, o Mariano, o Francisco Tenreiro — uma pena ter morrido cedo – o Fernandes Martins, de Coimbra, e eu mesma. De resto, fui sempre sozinha. Claro que no terreno tinha sempre apoio de todos os governadores, nunca me faltou apoio. Mas em muitas situações estava mesmo sozinha.

Alda Rocha